O
princípio de subsidiariedade no problema
da delimitação entre as esferas de
ação da iniciativa e do Estado |
A
posição da Igreja no tocante às relações
entre o Estado e a iniciativa privada – considerada
esta não só no campo econômico, como
em qualquer outro – não é liberal
nem socialista.
Segundo a doutrina liberal, a função do
Estado se cinge à esfera política, e só
intervém na esfera privada para a punição
dos crimes, bem como para a manutenção da
ordem ou dos bons costumes. A doutrina da Igreja reputa
minimalista esta concepção.
Segundo a doutrina socialista, a função
do Estado, além da esfera política, pode
abarcar, em princípio, toda a esfera privada. Socialismo
equivale, pois, a totalitarismo. As diversas correntes
socialistas só divergem entre si quanto à
latitude com que convém ao Estado exercer em concreto
seu poder, em vista das circunstâncias deste ou
daquele país.
A posição da Igreja – exposta nos
textos a seguir apresentados – evita ambos os extremos.
Nem socialista, nem liberal, ensina ela o princípio
de subsidiariedade, enunciado especialmente por Pio XI
e retomado em expressos termos por João XXIII.
Este princípio também está subjacente
na famosa distinção entre povo e massa,
feita por Pio XII em texto incluído nesta Secção.
A mais perfeita ordem hierárquica
se define pelo princípio da função
“supletiva” dos poderes públicos.
Encíclica Quadragésimo Anno de
15 de maio de 1931:
“ Assim como é injusto subtrair aos indivíduos
o que eles podem efetuar com a própria iniciativa
e indústria, para o confiar à coletividade,
do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada
o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir,
é uma injustiça, um grave dano e perturbação
da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua
ação é coadjuvar os seus membros,
e não destruí-los nem absorvê-los.
Deixe,
pois, a autoridade pública ao cuidado de associações
inferiores aqueles negócios de menor importância,
que a absorviam demasiado; poderá então
desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente
o que só a ela compete, porque só ela o
pode fazer: dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme
os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se todos
os que governam de que quanto mais perfeita ordem hierárquica
reinar entre as várias agremiações,
segundo este princípio da função
‘supletiva’ dos poderes públicos, tanto
maior influência e autoridade terão estes,
tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da
nação”.
[Documentos
Pontifícios, Vozes, Petrópolis, fasc. 3,
5a ed., 1959, pp. 31-32].
Com o apoio da massa, reduzida
a não mais que uma simples máquina, o Estado
pode impor seu arbítrio à parte melhor do
verdadeiro povo.
Radiomensagem de Natal de 1944:
“O
Estado não contém em si e não reúne
mecanicamente num dado território uma aglomeração
amorfa de indivíduos. Ele é, e na realidade
deve ser, a unidade orgânica e organizadora de um
verdadeiro povo.
Povo
e multidão amorfa, ou como se costuma dizer, ‘massa’,
são dois conceitos diversos. O povo vive e se move
por vida própria; a massa é de si inerte,
e não pode ser movida senão por fora. O
povo vive da plenitude da vida dos homens que o compõe,
cada um dos quais – em seu próprio posto
e a seu próprio modo – é uma pessoa
consciente das próprias responsabilidades e das
próprias convicções. A massa, ao
invés, espera o impulso de fora, fácil joguete
nas mãos de quem quer que desfrute seus instintos
ou impressões, pronta a seguir, vez por vez, hoje
esta, amanhã aquela bandeira. Da exuberância
de vida de um verdadeiro povo a vida se difunde, abundante,
rica, no Estado e em todos os seus órgãos,
infundindo-lhes com vigor incessantemente renovado a consciência
da própria responsabilidade, o verdadeiro senso
do bem comum. Da força elementar da massa, habilmente
manejada e utilizada, o Estado pode também servir-se:
nas mãos ambiciosas de um só ou de vários
que as tendências egoísticas tenham agrupado
artificialmente, o mesmo Estado pode, com o apoio da massa,
reduzida a não mais que uma simples máquina,
impor seu arbítrio à parte melhor do verdadeiro
povo: em conseqüência, o interesse comum fica
gravemente e por largo tempo atingido e a ferida é
bem freqüentemente de cura difícil”.
[Discorsi
e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, vol. VI,
pp. 238-239].
Títulos
legítimos de aquisição da propriedade
são a ocupação das coisas sem dono
e a indústria, que aumenta o valor das coisas.
Encíclica
Quadragésimo Anno de 15 de maio de 1931:
“Títulos
de aquisição do domínio são
a ocupação de coisas sem dono, a indústria
ou a chamada especificação, como o demonstram
abundantemente a tradição de todos os séculos
e a doutrina do Nosso Predecessor Leão XIII. De
fato, não faz injustiça a ninguém,
por mais que alguns digam o contrário, quem se
apodera de uma coisa abandonada ou sem dono; de outra
parte a indústria que alguém exerce em nome
próprio, e com a qual as coisas se transformam
ou aumentam de valor, dá-lhe direito sobre os produtos
do seu trabalho”.
[Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis,
fasc. 3, 5a ed., 1959, pp. 21-22].
Economia normalmente
sujeita ao Estado: inversão da ordem das coisas.
Discurso de 7 de maio de 1949 à IX Conferência
da União Internacional das Associações
Patronais Católicas:
“Não
há dúvida de que a Igreja também
– dentro de certos limites justos – admite
a estatização e julga ‘que se pode
legitimamente reservar aos poderes públicos certas
categorias de bens, os que apresentam um tal poderio que
não seria possível, sem pôr em perigo
o bem comum, abandoná-los às mãos
dos particulares (Encíclica Quadragésimo
Anno – A.A.S., V. XXIII, 1931, p. 214). Mas fazer
desta estatização como que a regra normal
da organização pública da economia
seria subverter a ordem das coisas. A missão do
direito público é com efeito servir o direito
privado, e não absorvê-lo. A economia –
aliás, como qualquer outro ramo da atividade humana
– não é por natureza uma instituição
de Estado; ela é, ao invés, o produto vivo
da livre iniciativa dos indivíduos e de seus grupos
livremente constituídos”.
[Discorsi
e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, vol, XI,
p. 63].
A socialização
total tornaria pavorosa realidade a imagem terrificante
do Leviatã.
Radiomensagem de 14 de setembro de 1952 ao Katholikentag
de Viena:
“Se
os sinais dos tempos não enganam, na segunda fase
das controvérsias sociais, em que já entramos,
têm precedência (com relação
à questão operária, que dominou a
primeira fase) outras questões e problemas. Citemos
aqui dois deles:
A
superação da luta de classes por uma recíproca
e orgânica ordenação entre o empregador
e o empregado. Pois a luta de classes nunca poderá
ser um objetivo da ética social católica.
A Igreja sabe que é sempre responsável por
todas as classes e camadas do povo.
Ademais,
a proteção do indivíduo e da família,
frente à corrente que ameaça arrastar a
uma socialização total, em cujo fim se tornaria
pavorosa realidade a imagem terrificante do Leviatan.
A Igreja travará esta luta até o extremo,
pois aqui se trata de valores supremos: a dignidade do
homem e a salvação da alma”.
[Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII,
vol. XIV, p.314].
O totalitarismo invasor,
uma tentação para o Estado.
Carta de 14 de julho de 1954 à 41a Semana
Social da França:
“A
fidelidade dos governantes a este ideal de proteger a
liberdade do cidadão e servir ao bem comum será,
além do mais, sua melhor salvaguarda contra a dupla
tentação que os espreita ante a amplidão
crescente de sua tarefa: tentação de fraqueza,
que os faria abdicar sob a pressão conjugada dos
homens e dos acontecimentos; tentação inversa
de estatismo, pela qual os poderes públicos se
substituiriam indevidamente às livres iniciativas
privadas para reger de maneira imediata a economia social
e outros ramos da atividade humana. Ora, se não
se pode hoje negar ao Estado um direito que lhe recusava
o liberalismo, não é menos verdade que sua
tarefa não é, em princípio, assumir
diretamente as funções econômicas,
culturais e sociais que dependem de outras competências;
ela consiste antes em assegurar a real independência
de sua autoridade de maneira a poder conceder a tudo o
que representa um poder efetivo e valioso no país
uma parte justa de responsabilidade sem perigo para a
sua própria missão de coordenar e de orientar
todos os esforços para um fim comum superior”.
[Discorsi
e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, vol. XVI,
pp. 465-466].
O
apelo excessivo à intervenção do
Estado conduz à ruína o próprio Estado.
Discurso ao VII Congresso da União Cristã
dos Chefes de Empresas e Dirigentes da Itália (
UCID) de 7 de março de 1957:
“Atribuindo
a todo o povo a tarefa própria, se bem que parcial,
de ordenar a economia futura, estamos muito longe de admitir
que esse encargo deva ser confiado ao Estado como tal.
Entretanto, ao observar o andamento de certos congressos,
mesmo católicos, em matérias econômicas
e sociais, pode-se notar uma tendência sempre crescente
para invocar a intervenção do Estado, de
modo que se tem por vezes como que a impressão
de que esse é o único expediente imaginável.
Ora, sem dúvida alguma, segundo a doutrina social
da Igreja, o Estado tem seu papel próprio na ordenação
da vida social. Para desempenhar esse papel, deve mesmo
ser forte e ter autoridade. Mas os que o invocam continuamente
e lançam sobre ele toda a responsabilidade o conduzem
à ruína e fazem mesmo o jogo de certos poderosos
grupos interessados. A conclusão é que dessa
forma toda responsabilidade pessoal nas coisas públicas
vem a cessar, e que se alguém fala dos deveres
ou das negligências do Estado, refere-se aos deveres
ou faltas de grupos anônimos, entre os quais, naturalmente,
não cogita de contar-se a si próprio”.
[Discorsi
e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, vol. XIX,
p. 30].
O princípio de subsidiariedade.
Encíclica Mater et Magistra de 15 de maio
de 1961:
“De
início, deve-se afirmar que no campo econômico
a parte principal compete à iniciativa privada
dos cidadãos, quer ajam isoladamente, quer associados
de diferentes maneiras a outros para a consecução
de interesses comuns.
Contudo,
nessa questão, pelos motivos expostos por Nossos
Antecessores, é também necessária
a presença operante da autoridade civil, com o
fim de promover retamente o incremento dos bens materiais,
dirigindo-o para o progresso da vida social e, portanto,
em benefício de todos os cidadãos.
Essa
ação do Estado, que protege, estimula, coordena,
supre e completa, apóia-se no ‘princípio
de subsidiariedade’ (A.A S., XXIII, 1931, p. 203),
assim formulado por Pio XI na Encíclica Quadragésimo
Anno: ‘Permanece, contudo, firme e constante na
filosofia social aquele importantíssimo princípio
que é inamovível e imutável: assim
como não é lícito subtrair aos indivíduos
o que eles podem realizar com as próprias forças
e indústria, para confiá-lo à coletividade,
do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada
o que sociedades menores e inferiores poderiam conseguir,
é uma injustiça ao mesmo tempo que um grave
dano e perturbação da boa ordem. O fim natural
da sociedade e de sua ação é coadjuvar
os seus membros e não destruí-los nem absorvê-los’
(ibid p. 203)”.
[“Catolicismo”
nº 129, setembro de 1961, p. 3].
Voltar